Tereza de Benguela: a poderosa rainha africana que desafiou a escravidão no coração de Mato Grosso

Líder política e espiritual no século XVIII, Tereza de Benguela construiu uma sociedade autônoma no interior mato-grossense. Sua história, ainda pouco conhecida, revela organização, resistência e a força esquecida das mulheres negras no Brasil.

Poucos nomes evocam tamanha força, inteligência e coragem quanto o de Tereza de Benguela, mulher negra que, no século XVIII, desafiou o sistema escravista brasileiro a partir do interior do atual estado de Mato Grosso. Embora sua memória seja celebrada oficialmente no Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, em 25 de julho, sua história ainda é pouco conhecida — até mesmo em sua terra natal.

Neste artigo, vamos explorar os registros históricos, lacunas e legados deixados por Tereza de Benguela e o Quilombo do Quariterê, revelando como sua trajetória representa não só um ato de resistência, mas uma aula de organização social e autonomia.

Uma mulher entre rainhas

Tereza de Benguela não era uma personagem fictícia de um conto heroico: era uma mulher real, de carne e osso, nascida possivelmente na região africana de Benguela, onde hoje é Angola. Como milhares de outros africanos, foi trazida à força para o Brasil por meio do tráfico negreiro, sendo forçada a viver sob o regime da escravidão.

Mas a história de Tereza não parou no sofrimento. Ela se tornou líder política, estratégica e espiritual de uma comunidade formada por negros fugitivos e indígenas na região que atualmente corresponde a Vila Bela da Santíssima Trindade, oeste de Mato Grosso.

Segundo registros históricos, ela liderou o Quilombo do Quariterê (também chamado de Quilombo do Piolho) por mais de 20 anos, um feito extraordinário numa época em que lideranças femininas eram quase invisíveis nos relatos oficiais.

Tereza de Benguela | Créditos: Reprodução

O quilombo de Tereza não era um agrupamento improvisado, mas uma sociedade organizada, com parlamento próprio, sistema de defesa armada e produção econômica autônoma. Seus habitantes, cerca de 100 pessoas, entre negros e indígenas, plantavam milho, feijão, mandioca e algodão. Produziam tecidos, que inclusive eram vendidos para colonos, além de desenvolver práticas de metalurgia.

Esse grau de organização revela o conhecimento ancestral trazido pelos africanos escravizados e adaptado às condições do cerrado e da floresta mato-grossense. Como destaca a professora Maria Cláudia Cardoso (UNILAB), o quilombo de Tereza era autossustentável e tecnologicamente avançado para a época.

Liderança entre armas e lendas

A história da liderança de Tereza traz versões distintas. Alguns documentos indicam que ela teria assumido o comando depois da morte de seu companheiro, Piolho, assassinado por colonizadores. Outros sugerem que governaram juntos por um período. Em ambas as versões, Tereza emerge como figura central e poderosa.

Ela era tratada nos relatos coloniais como uma “rainha” — comparação com soberanas africanas, como Nzinga de Angola — e retratada como uma mulher temida e respeitada.

Mas ela também é alvo de narrativas que buscavam desqualificá-la. Alguns manuscritos a descrevem como tirana, alegando que ordenava castigos severos como enforcamentos e mutilações. Essas versões, no entanto, devem ser vistas com cautela, pois carregam a ótica colonizadora que frequentemente criminalizava e desumanizava líderes negros e indígenas.

Segundo a historiadora e professora da PUC-Rio, Crislayne Alfagali:

Para alguns, ela foi uma líder como Cleópatra. Mas, para outros, ela foi tirânica. De qualquer forma, a única certeza é que ela foi uma mulher que liderou um quilombo importante da região, o que é raro.

O fato é que o Quariterê resistiu até 1770, quando foi atacado pelas tropas coloniais. Os registros indicam duas possíveis versões para a morte de Tereza: uma delas afirma que ela tentou fugir a cavalo com um soldado aliado, mas caiu no rio e foi capturada. A outra versão, ainda mais trágica, sugere que ela teria tirado a própria vida ao perceber que não havia mais chance de vitória.

Ambas as versões se encontram num ponto: Tereza foi morta e sua cabeça acabou exposta no centro do quilombo destruído, como exemplo de punição a quem desafiasse o poder colonial. Ainda segundo Crislayne:

Dizem que ela morreu assustada. Não sabemos ao certo o que isso significa, mas a cabeça dela foi cortada e colocada no centro de seu antigo quilombo como uma forma de mostrar o ‘exemplo’ do que ocorre com pessoas que lutam contra a administração colonial.

Memória e apagamento

Apesar de sua importância histórica, Tereza de Benguela permaneceu por séculos à margem da memória nacional. Como explica a historiadora Idalina Freitas (UNILAB), isso ocorre pelo cruzamento de fatores como racismo, sexismo e elitismo acadêmico.

A ausência de documentos oficiais e o desinteresse institucional pela história de pessoas negras e indígenas contribuíram para o apagamento de figuras como Tereza. A situação só começou a mudar com políticas educacionais como a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatória a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar.

No entanto, ainda há muito a fazer. Lembrar Tereza de Benguela é também desafiar a lógica do esquecimento. Como disse a professora Crislayne Alfagali:

Talvez, lembrar de Tereza seja lembrar que, assim como houve escravidão, também existiu resistência.

Hoje, Tereza de Benguela é reconhecida como um símbolo da luta das mulheres negras no Brasil. Sua história inspira debates sobre igualdade racial, justiça social e protagonismo feminino. Mas é preciso ir além da celebração simbólica: ela deve ocupar os livros escolares, os museus, as ruas, os murais e os corações.

Ao conhecer sua história, nos perguntamos: quantas Terezas existem hoje em silêncio, enfrentando batalhas diárias por dignidade e liberdade? Quantas mães, avós e lideranças negras continuam resistindo, como ela resistiu?

Referências Bibliográficas

ALFAGALI, Crislayne. Entrevista ao Jornal O Globo, 2022.
CARDOSO, Maria Cláudia. Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB.
FREITAS, Idalina. Professora da UNILAB.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos e Revoltas Populares no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 2016.
O GLOBO. Quem foi Tereza de Benguela, escravizada que virou rainha no Brasil, 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/07/quem-foi-tereza-de-benguela-escravizada-que-virou-rainha-no-brasil.ghtml

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