A história (oculta) da escravidão no estado de Mato Grosso: memórias que resistem ao esquecimento

Trabalho forçado, espiritualidade, quilombos e irmandades religiosas moldaram a identidade cultural de Mato Grosso. Muito antes da abolição, milhares de pessoas pretas escravizadas construíram do nosso estado com seu trabalho, cultura e resistência. Mas por que essa história ainda é tão pouco contada?

Por trás das ruas de paralelepípedos, das igrejas centenárias e dos casarios antigos de cidades como Cuiabá, Diamantino e Vila Bela da Santíssima Trindade, existe uma história marcada por dor, silêncio e resistência.

É a história das mulheres e homens africanos que foram trazidos forçadamente para Mato Grosso desde o século XVIII, e que com seu trabalho, cultura e espiritualidade moldaram a identidade deste estado muito antes que o termo “identidade” fosse sequer discutido. Apesar disso, a presença de pessoas pretas nesse território ainda é pouco visível nos currículos escolares, nas placas comemorativas e nos centros culturais.

A chegada dos escravizadas a Mato Grosso está profundamente ligada ao ciclo do ouro. A partir de 1719, quando as primeiras descobertas de ouro ocorreram na região de Cuiabá, a Coroa Portuguesa passou a incentivar a ocupação da região, e o envio de mão de obra escravizada africana foi essencial para a implantação da atividade mineradora.

Os escravizados eram submetidos a jornadas extenuantes nas lavras auríferas, trabalhando em condições insalubres, com altíssimas taxas de mortalidade. Mas o trabalho não se restringia à mineração: incluía transporte de cargas, construção de caminhos e edificações, agricultura e serviços domésticos.

Obra “Negros no Fundo do Porão”, que retrata trasporte de escravizados | Créditos: Johann Moritz Rugendas

Em Cuiabá, por exemplo, a presença de pessoas pretas era intensa e estrutural. Os registros do século XIX mostram que a maioria da população era composta por pretos e pardas, e que boa parte da economia urbana dependia diretamente do trabalho de escravizados.

Havia os chamados “escravos de ganho”, que saíam diariamente pelas ruas vendendo produtos, oferecendo serviços ou exercendo ofícios urbanos como carpinteiros, pedreiros, cozinheiros e lavadeiras. A cidade foi literalmente erguida por mãos pretas, e muitas tradições culturais urbanas que ainda sobrevivem, da culinária à musicalidade, têm raiz africana.

Mas o que distingue a escravidão em Mato Grosso de outras regiões do país é também o tipo de resistência que se construiu. Em meio às matas densas e aos vales isolados, surgiram diversos quilombos formados por pessoas fugidas das lavras e fazendas.

O mais emblemático deles é o do Quariterê, localizado na região do Vale do Guaporé, comandado por Tereza de Benguela. A liderança de Tereza representou não apenas a resistência à escravidão, mas a capacidade de organização política, militar e econômica de um grupo que se autogeria, produzia, negociava e se defendia das constantes tentativas de aniquilamento por parte das autoridades coloniais.

Outro aspecto pouco discutido são as irmandades religiosas formadas por pessoas pretas, como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Essas associações eram muito mais que espaços de culto: funcionavam como redes de solidariedade, onde se construíam laços comunitários, se preservavam tradições e, em alguns casos, se conseguiam alforrias coletivas. Nessas irmandades, a religião era ao mesmo tempo abrigo e forma de resistência simbólica.

Com a abolição formal da escravidão em 1888, o Estado brasileiro não ofereceu aos libertos qualquer tipo de integração social. Em Mato Grosso, não foi diferente. Muitas pessoas permaneceram trabalhando nas mesmas fazendas como agregados ou serviçais, sem acesso à terra, à educação ou à cidadania. Outros migraram para os centros urbanos, formando as primeiras periferias. A exclusão tornou-se histórica, agora sob uma roupagem legalista e silenciosa.

Apesar disso, as marcas da presença africana estão por toda parte: na arquitetura, nos nomes de bairros, nas festas populares, nas rodas de congo, no batuque, na medicina popular e na organização familiar. Há uma herança viva, embora muitas vezes apagada dos discursos oficiais.

Por que, então, essa história ainda é tão pouco contada? Talvez porque ela desafia narrativas heroicas, mostra a violência fundadora de nosso território e nos obriga a reconhecer que a liberdade não veio como um presente, mas foi conquistada a duras penas por aqueles que resistiram à desumanização todos os dias.

Contar essa história com honestidade é uma forma de devolver à população preta mato-grossense o lugar que sempre foi seu: o de protagonista na construção do estado.

Referências Bibliográficas

CUNHA, Olival Freire. Escravidão e Sociedade em Mato Grosso (1750-1888). Cuiabá: UFMT, 1984.
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. Escravidão e Traficantes no Império Luso-Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: Histórias de quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SOUSA, Ana Lúcia. Quilombos em Mato Grosso: Histórias de resistência e liberdade. Cuiabá: EdUFMT, 2006.

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